Alderi Souza de Matos: Aborto e excomunhão

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alderi-souza-de-matosOs evangélicos tendem a concordar com a posição da lei brasileira, que só permite o aborto quando a vida da mãe corre risco ou quando a gravidez resulta de violência sexual

No dia 4 de março, uma menina de 9 anos e trinta quilos, estuprada pelo padrasto de 23 anos e grávida de quatro meses de gêmeos, abortou num hospital de Recife, com o consentimento da mãe e sob os cuidados médicos. Nem a mãe da menina nem os médicos cometeram crime algum diante da lei brasileira nem do olhar misericordioso de muitos cristãos, católicos ou protestantes. Porém no dia seguinte, o arcebispo José Cardoso Sobrinho, de 76 anos, sucessor de Dom Helder Câmara na Arquidiocese de Olinda e Recife, anunciou a excomunhão da mãe da garota e dos médicos. Poucos acontecimentos provocaram tanto reboliço no país e no exterior como essa medida disciplinar. Daí esta entrevista com Alderi Souza de Matos, 56 anos, mestre em teologia e doutor em história da igreja, autor de vários livros e responsável pela seção “História” da revista Ultimato.

Na perspectiva protestante, o aborto é crime e, portanto, pecado contra Deus?
Muitas igrejas protestantes consideram o aborto um pecado e um crime. É um atentado contra a vida, a vida indefesa de um ser humano em formação. Já na igreja antiga os cristãos se posicionaram contra essa prática, comum naquela época. Hoje ele só seria admissível quando conflita com outro valor, no caso a vida da mãe. Os evangélicos tendem a concordar com a posição da lei brasileira, que só permite o aborto quando a vida da mãe corre risco ou quando a gravidez resulta de violência sexual (estupro). Todavia, muitos protestantes de linha progressista tendem a seguir os critérios da cultura dominante, que admite o aborto em qualquer circunstância. Seria uma questão de livre escolha da mãe ou do casal.

Se a mãe que permitiu o aborto da menina de 9 anos em Pernambuco e os médicos que o realizaram fossem membros de uma igreja evangélica, eles sofreriam algum tipo de disciplina eclesiástica?
Depende da igreja. Muitas igrejas evangélicas têm posição firmada contra essa prática, o que resultaria em algum tipo de disciplina. Outros grupos, como a Igreja Universal do Reino de Deus, são favoráveis ao aborto. Edir Macedo tem se pronunciado várias vezes nesse sentido. No caso em questão, todavia, a situação é mais complexa por causa da idade da menina grávida.

Afinal, o que é excomunhão? Desde quando ela é aplicada pela Igreja Católica Romana? Quem na hierarquia católica tem autoridade para aplicá-la?
Como indica a palavra, excomunhão é a exclusão da comunhão da igreja. O excomungado não mais participa em plenitude da vida eclesial. A excomunhão é uma disciplina antiga na história da igreja. Começou nos primeiros séculos, especialmente em conexão com as perseguições, quando muitos cristãos apostatavam da fé. Depois de serem excluídos, muitos se arrependiam dos seus pecados e buscavam readmissão na igreja. Isso levou ao desenvolvimento do sistema penitencial católico. Alguns bispos rigorosos da antiguidade só readmitiam esses relapsos sob condições muito estritas. Em alguns casos, o indivíduo só se reconciliava plenamente com a igreja no leito de morte. Quem tem autoridade para aplicar essa disciplina “medicinal” é o bispo.

Parece que não há rol de membros comungantes numa paróquia católica, como acontece em geral nas igrejas evangélicas históricas. Como funciona a excomunhão numa paróquia?
A excomunhão não significa uma exclusão total da vida eclesial nem muito menos da salvação. A pessoa excomungada não pode participar de certos atos da igreja, como receber os sacramentos, mas espera-se que cumpra os seus deveres para com a igreja. Nada impede que essa pessoa vá a outra paróquia e participe da Eucaristia, embora tal comportamento seja considerado condenável. Em um dicionário de teologia, Karl Rahner e Herbert Vorgrimler afirmam o seguinte: “O significado da excomunhão em nossa atual sociedade pluralista é reduzido, mas sua essência é preservada de modo autêntico no sacramento da penitência”.

Foi a primeira vez que a CNBB e o próprio Vaticano se pronunciaram, aqui no Brasil, contra o pronunciamento de um bispo?
Já houve casos em que o Vaticano se pronunciou contra declarações de bispos, principalmente partidários da teologia da libertação.

Sob o ponto de vista moral, qual dos dois é o mal maior: estupro ou aborto?
As duas situações têm em comum a prática de violência contra o mais fraco, embora quanto ao aborto possam existir atenuantes. Muitos teólogos entendem que o estupro não justifica o aborto.

João Calvino negou os elementos da Ceia do Senhor aos libertinos de Genebra… Martinho Lutero foi excomungado pelo papa Leão X em janeiro de 1521, aos 37 anos. O que você diz sobre esses fatos?
Os libertinos eram cidadãos de Genebra (alguns deles participantes dos conselhos governantes) que não queriam se submeter aos rigorosos padrões de conduta adotados na cidade. Calvino achava que em razão disso eles não tinham o direito de participar da mesa do Senhor. A “excomunhão” era tanto uma punição de pessoas que não queriam viver de acordo com o evangelho como uma declaração à comunidade de que a igreja não aceitava esse tipo de comportamento. No caso de Lutero, a excomunhão resultou de sua rejeição da autoridade do papa e negação de dogmas católicos. No primeiro caso, o problema era de natureza moral, no segundo, doutrinária. Numa época em que a igreja estava estreitamente ligada ao estado, a excomunhão podia ter graves consequências para o indivíduo (expulsão da comunidade, perda dos bens, prisão e até morte). A excomunhão de Lutero serviu de base para a sua condenação como herege pela Dieta de Worms (1521). Se não fosse a proteção do seu príncipe, ele provavelmente teria sido morto.

A primeira grande cisão do cristianismo foi provocada pela excomunhão de Miguel Cerulário em Constantinopla, no ano 1054, como se afirma?
A antiga Igreja Oriental ou Grega já havia começado a se afastar de sua congênere Ocidental, Latina ou Romana, desde os primeiros séculos da história cristã. Todavia, o evento do dia 16 de julho de 1054 marcou a ruptura final entre as duas grandes tradições cristãs. Essa foi, sem dúvida, a primeira grande ruptura do cristianismo, mas houve outras menores em séculos anteriores, que deram origem às igrejas montanistas, donatistas, nestorianas, monofisitas etc.

Revista Ultimato / www.padom.com

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