O mistério da fé das celebridades

259

Tom Cruise cientologiaA Igreja da Cientologia está mais uma vez no banco dos réus, desta vez em França, onde a religião pode mesmo ser banida. Em Portugal existem dez mil cientologistas e a Lei da Liberdade Religiosa não prevê essa situação.

Pode uma religião ser banida de um país? Em França, a resposta é sim e a religião em causa é a Cientologia, cujo responsável máximo no país, Alain Rosenberg, e outros cinco membros da igreja estão desde 25 de Maio no banco dos réus, acusados de “fraude organizada” e “prescrição ilegal de medicamentos”. Os responsáveis franceses da igreja apadrinhada por muitas estrelas de Hollywood (como Tom Cruise e John Travolta), fundada nos anos 50 nos Estados Unidos pelo escritor de ficção científica L. Ron Hubbard, podem ser condenados a dez anos de prisão e um milhão de euros de multa, enquanto a Associação Espiritual de Cientologia, como “pessoa moral”, pode ter de pagar cinco milhões de euros de multa.O processo termina a 17 de Junho e se houver condenação a Cientologia poderá mesmo ser banida de França, um dos países europeus (a par da Alemanha) que não lhe reconhece o estatuto de religião, remetendo-a para uma lista de seitas perigosas criada em 1996. No mundo, a igreja tem cerca de dez milhões de seguidores.

A Cientologia chegou a Portugal nos anos 70, pela mão do próprio fundador da religião L. Ron Hubbard que, de acordo com Elizabete Dâmaso, directora de Assuntos Sociais da Igreja Portuguesa de Cientologia, esteve em Portugal entre 1971 e 1974, com o seu iate Apollo, para disseminar a doutrina. Mais tarde, em 1986, a Igreja de Cientologia atingiu o estatuto de associação religiosa, com registo no Ministério da Justiça. Hoje existem cerca de dez mil cientologistas portugueses, concentrados sobretudo na zona de Lisboa. São médicos, professores, operários, de todas as faixas etárias, “embora sejam mais os jovens, entre os 25 e 35 anos, que mais procuram a igreja”, diz Elizabete Dâmaso. Procuram “melhoria espiritual” e acreditam que o homem “é um ser espiritual imortal”, com “potencialidades ilimitadas”, explica o ‘site’ www.cientologia-lisbon.org.

Foi na Calçada do Moinho do Vento, numa subida a pique entre a Rua das Pretas e o Campo dos Mártires da Pátria, que a Igreja da Cientologia estabeleceu a sua nova sede em Portugal. É ali, num espaço que faz lembrar uma biblioteca, igual a tantos outros locais de culto, onde a cruz de oito pontas se destaca numa das paredes, que se praticam os mandamentos de L. Ron Hubbard, cujas obras estão espalhadas por todo o lado. É ali que se celebram datas significativas, como o aniversário do fundador, o dia do Auditor (ou Ministro) e o aniversário da fundação da Associação Internacional de Cientologistas, com uma assistência que pode variar entre 30 a 70 pessoas. Além disso, celebram cerimónias de ordenação, baptizados, casamentos e serviços fúnebres. Todas as semanas, “os Serviços Dominicais proporcionam aos paroquianos conselhos espirituais dados pelo Ministro”, explica Elizabete Dâmaso.

Braço-de-ferro no tribunal

Cunhada como religião polémica, esta não é a primeira vez que a Cientologia está a braços com a justiça. Neste caso, o processo decorre com base numa investigação do magistrado Jean-Cristophe Hullin, que demorou nove anos a reunir as provas necessárias para provar em tribunal que a Igreja da Cientologia é “antes de mais, uma actividade comercial” cuja interacção com os crentes se baseia numa “real obsessão pela remuneração financeira”, cita a revista “Time”. De acordo com Hullin, o objectivo da Cientologia é “controlar pessoas psicologicamente frágeis para lhes extorquir a sua fortuna e exercer um domínio psicológico”. Tal como nos anteriores processos judiciais, o Magistério Público francês está a centrar as suas acusações na extorsão de dinheiro, em vez de questionar as crenças religiosas dos cientologistas.

Em 1978, L. Ron Hubbard foi considerado culpado de fraude por um tribunal parisiense, relata a revista “Time”, e em 1997 um tribunal de Lyon condenou cinco cientologistas por ligação ao suicídio de um membro da igreja. Em 2003, a Cientologia foi condenada por uso abusivo de informações sobre ex-membros.

Os seis cientologistas franceses neste momento no banco dos réus são suspeitos de terem extorquido dezenas de milhares de euros a quatro antigos fiéis, aproveitando-se da sua vulnerabilidade. Uma delas é Aude-Claire Laton. Deprimida com o fim do seu casamento, em 1998 aceitou o convite de um homem que a abordou no metro de Paris para lhe propor um teste de personalidade grátis. Seguiu-se a compra de livros sobre “reparação da vida”, um pacote de “purificação” e vitaminas, num total de cerca de 20 mil euros que a ex-cientologista garante que lhe foram extorquidos.

Em declarações à AFP, a porta-voz da igreja em França, Danièle Gounord, disse que todas as acusações são mentira e que a Cientologia é vítima de perseguições, prometendo recorrer a instâncias superiores para o provar, como o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. “Este é um julgamento por heresia”, acusou Gounord, acusando os franceses de intolerância face às crenças religiosas dos cientologistas.

Em Lisboa, a Igreja Portuguesa de Cientologia segue o caso com atenção. “Em França está a existir uma caça às bruxas com propósitos hereges, tentando usar a comunicação social para criar propaganda negra”, diz Elizabete Dâmaso, directora de Assuntos Sociais da Cientologia em Portugal, lembrando que “aconteceu o mesmo em Espanha”, onde ao fim de 17 anos de investigação a Cientologia foi reconhecida como religião. “As queixas eram tão ridículas que acusavam a igreja de ser responsável pela Revolução do 25 de Abril e pela morte de Franco”, diz a cientologista portuguesa, reforçando: “A discriminação sempre existiu”. Para aumentar a polémica, na semana passada a enciclopédia on-line Wikipédia proibiu a Cientologia de editar textos sobre a sua própria igreja. Numa verdadeira “guerra de edição”, este é já o quarto incidente entre a Wikipédia e a Igreja da Cientologia nos últimos quatro anos. Agora, a Wikipédia decidiu que todos os IP’s operados pela Igreja da Cientologia vão ser bloqueados.

Nos últimos anos, a Cientologia tem vindo a atrair cada vez mais atenção por causa dos seus membros mais famosos: Mimi Rogers, John Travolta, Beck, Jason Lee, Lisa Marie Presley, Kirstie Alley, Tom Cruise, a sua mulher Katie Holmes e até a filha do casal, a pequena Suri. Depois da imagem de ‘sex-symbol’ que o tornou famoso no final dos anos 80, com filmes como “Top Gun” e “Cocktail”, Tom Cruise é agora um feroz embaixador da Igreja da Cientologia, promovendo-a sempre que pode. Nos próximos meses, Cruise vai mudar-se para a Austrália para divulgar a Cientologia no país (onde, nos anos 60, a igreja chegou a ser proibida em algumas regiões) e ajudar a desmistificar “as lendas” em torno da religião. Cruise revelou que os ensinamentos da Cientologia o ajudaram a superar a dislexia, um distúrbio que sofria desde criança.

Elizabete Dâmaso não valoriza muito os “rostos famosos” da Cientologia. “A maior parte dos crentes até nem são famosos. Os famosos também necessitam de ajuda, como outra pessoa qualquer, e ao sentirem os resultados que tiveram com a sua religião, alguns usam a fama como forma de ajudar”, diz. Apesar da resistência de alguns países europeus em reconhecerem a Cientologia como religião, em 60 anos de existência, a igreja conseguiu marcar presença em 165 países, “com mais de 100 reconhecimentos governamentais e judiciais”, diz Elizabete Dâmaso. A Cientologia foi reconhecida em países como os Estados Unidos (foi o primeiro, em 1993), Espanha, Suécia, África do Sul, Áustria, Rússia, Austrália, Nova Zelândia, Argentina, Brasil, Costa Rica, Nepal, Tanzânia, Quénia, Zimbabué, Taiwan, Cazaquistão, Quirguistão, Venezuela, Equador, Índia e Filipinas. Pelo contrário, França, Alemanha, Canadá, Grécia, Bélgica e o Reino Unido são países que não reconhecem a religião.

Liberdade Religiosa, ou talvez não

Em Portugal, a lei não deixa margem para dúvidas: “A liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável e garantida a todos em conformidade com a Constituição, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o direito internacional aplicável e a presente lei”, diz o primeiro artigo do primeiro capítulo da Lei da Liberdade Religiosa, datada de 2001. Foi a partir deste momento que as associações religiosas registadas na secretaria-geral do Ministério da Justiça passaram a pessoas colectivas religiosas, ou seja, a lei instituiu um enquadramento legal para as religiões estabelecidas há pelo menos 30 anos em Portugal e reconhecidas internacionalmente há pelo menos 60 anos, atribuindo-lhes benefícios anteriormente reservados à Igreja Católica: isenção total de impostos e reconhecimento do casamento e de outros ritos religiosos.

Diz o Relatório Internacional sobre Liberdade Religiosa publicado em 2008 pela embaixada dos Estados Unidos em Portugal que, “apesar de reconhecida como associação religiosa desde 1986 e como religião desde Novembro de 2007, a Igreja da Cientologia não está abrangida pela Lei da Liberdade Religiosa de 2001, tendo em conta que não está radicada no país há 30 anos, conforme estipulado pela lei”.

Fernando Soares Loja, advogado e vice-presidente da Comissão de Liberdade Religiosa (criada há cinco anos e presidida por Mário Soares), responsável da Aliança Evangélica em Portugal, defende que, na sequência da Lei da Liberdade Religiosa, e durante o processo de conversão das associações religiosas em pessoas colectivas religiosas, a Igreja da Cientologia aproveitou uma “brecha” na legislação. “A lei não previa a hipótese de uma associação religiosa não ser reconhecida como religião. Por isso, o registo nacional de pessoas colectivas não teve dúvidas e não pediu um parecer à Comissão da Liberdade Religiosa. A Igreja da Cientologia aproveitou essa brecha na lei. Soubemos por acaso, mas se tivéssemos sido consultados o nosso parecer teria sido negativo”, diz Soares Loja, defendendo que “a Igreja da Cientologia não é uma comunidade religiosa, não é uma religião nem uma igreja”.

Elizabete Dâmaso contrapõe esta opinião dizendo que “a Cientologia é uma religião no verdadeiro sentido da palavra”. E acrescenta: “As igrejas de Cientologia oferecem aos seus paroquianos um maior conhecimento espiritual, levando-os a alcançar a salvação”. “Nenhum governo ou tribunal pode obrigar alguém a pensar que o que sente não é religioso”, conclui.

Por não ser reconhecida como religião, “a Cientologia não é convidada para os eventos inter-religiosos” da Comissão de Liberdade Religiosa. Responsável da Igreja Católica para o diálogo inter-religioso, o padre Peter Stilwell, director da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, diz que “em Portugal não existe um diálogo inter-religioso formal e que esse mesmo diálogo funciona ao ritmo de cada comunidade religiosa, que organiza eventos e convida as outras religiões”, mas garante que “nesses eventos nunca se deparou com a Igreja da Cientologia ou com os seus representantes”. Dizem os responsáveis da Cientologia em Portugal que o diálogo inter-religioso é algo em que planeiam investir mais.

Ao contrário de Portugal, onde a lei não prevê a extinção de nenhuma religião nem sequer inclui o conceito pejorativo de seita, em França existe um Observatório de Seitas e uma lista de religiões consideradas “perigosas”, na qual se inclui a Igreja da Cientologia, as Testemunhas de Jeová, os Hare Krishna, entre outros. “Em França as religiões são consideradas perigosas, não há liberdade religiosa. Os franceses são anti-religiosos e o fenómeno religioso não é bem visto no espaço público, o que é totalmente anti-democrático”, defende Soares Loja, acrescentando: “Cá não existe essa ideia de banir uma religião, mas pode acontecer o Ministério Público apresentar uma investigação com legitimidade para pedir a perda do estatuto de entidade religiosa. Se existirem queixas”.

O responsável da Comissão de Liberdade Religiosa revela que, depois da perseguição aos não-católicos no tempo do Estado Novo, hoje em dia ainda “há muitas comunidades religiosas que nunca se registaram, muitas não têm personalidade jurídica e vivem no anonimato”. Para traçar ao certo este panorama, a pedido da Comissão de Liberdade Religiosa, o Centro de Estudos de Religiões e Cultura da Universidade Católica Portuguesa, está a levar a cabo um estudo sobre a “Morfologia do Campo Religioso em Portugal”, coordenado pelo professor Alfredo Teixeira.

“Por encomenda da comissão, estamos a fazer uma espécie de Páginas Amarelas das religiões em Portugal. É um processo complexo, porque como há total liberdade de associação, os cultos religiosos são livres de criar associações, mas muitas não estão registadas”, diz o coordenador do projecto de recolha de informação junto dos diferentes grupos religiosos que se registaram ao abrigo da Lei de Liberdade Religiosa.

O estudo decorre há dois anos e deverá estar concluído no início de 2010. “Não se trata de um censo formal, é uma base de dados. Claro que há grupos religiosos que nem sequer responderam, que mantêm reserva, não estão abertos ao diálogo. É uma reacção defensiva”, diz Alfredo Teixeira.

Economico/padom.com

Deixe sua opinião